Desde a Grécia, temos registro de um conflito que opõe formas de pensar. Uma dessas formas se considera mais profunda, atingindo a essência das coisas para, dessa forma, obter uma a verdade; enquanto outras – que segundo o pensamento hegemônico, precisa ser superado - não fragmentam teoria e prática e que, como lidam com questões cotidianas e com a transformação constante do real, não se preocupam em construir uma verdade a ser universalizada (entendam universalização como uma possibilidade de imposição de uma forma de pensar que se considera superior e mais verdadeira sobre outras que precisam ser subalternizadas por estarem distante do padrão hegemônico ocidental). Bem, o que pode parecer uma simples discussão restrita aos meios acadêmicos filosóficos, muitas vezes foi transferida para as políticas públicas levadas a cabo por nossos governantes. Um exemplo mais do que notório foi a política urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos, no início do século XX, política essa que teve continuidade com seus sucessores, sendo considerada ainda uma solução para muitos. Essas políticas não são simplórias e nem se baseiam apenas em um afastamento da população negra e pobre do centro da cidade em função das cores de suas peles. Elas buscam reviver a superação platônica dos conhecimentos e das práticas consideradas bárbaras, míticas e selvagem – como podemos encontrar na maioria dos livros de história da filosofia a passagem (evolutiva) do pensamento mítico dos bárbaros para o pensamento filosófico. No Rio de Janeiro, tudo que estivesse distante de Paris era considerado como algo a ser superado. Por isso a população descendente de escravos, com seus gostos, paladares, cheiros, cores, sons, com suas formas de conversar com seus ancestrais, com suas comidas, com suas batucadas, suas vozes, seus improvisos, foi afastada da cidade. Mas como a elite conseguiria ficar longe de tantas coisas que as seduziam? A forma encontrada foi folclorizar essas práticas, que dessa forma passaram a ser adestradas e administradas ou, segundos ela, refinada. Refinamento esse que passa pela elite assumir a produção dessas práticas ocidentalizando-as, “melhorando-as”. Exemplos para a folclorização? Balés apresentando danças que reproduzem as práticas simbólicas de conversa com os ancestrais, como o candomblé ou o jongo. Práticas de refinamento? A feijoada nos hotéis sem joelho, sem pé e sem orelha de porco, mas que são consideradas mais “apresentáveis” e mais saudáveis.
Sou professora da Faculdade de Formação de Professores e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde coordeno o grupo de pesquisa Saberes e Fazeres da Diáspora Africana no Brasil e muito me desaponta ler declarações de políticos que ainda tentam reviver esses conflitos e que utilizem a palavra suburbano quando deseja criticar ou ofender alguém. Mais não deixa de ser importante podemos perceber o que significa a modernidade do candidato Fernando Gabeira, quando em seu discurso ele só confirma o que pensa das gentes que vivem distante do centro da cidade, mas que apesar da distância e da tentativa de silenciamento de suas vozes continuam a construír a cultura do Rio de Janeiro (sim, senhor Gabeira, o Rio não é só bossa-nova). Refiro-me Pixinguinha, Clementina de Jesus, Tia Doca, Aniceto do Império, D. Ivonne Lara, Xangô da Mangueira, Seu Molequinho, Monarco, Mauro Diniz, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, o grupo Fundo de Quintal, João Nogueira, Osmar do Cavaco, Luperce Miranda, Zé Ketti, Paulo da Portela, Candeia, Argemiro Patrocínio, Jair do Cavaquinho, Tia Surica e muitos outros mais.
Senhor Fernando Gabeira, ainda dá tempo do senhor conhecer o outro lado da cidade e ver que lá existe vida pensante, apesar de muitas vezes elas não serem reconhecidas e difundidas por estarem fora de um padrão hegemônico.
Por fim, apesar de não morar em Paciência, não me considero precária por também não concordar com a instalação de um lixão naquele bairro. Sou suburbana!
Profa. Dra. Denise Barata